Neste sábado, 16, será o primeiro aniversário da Traditionis custodes. Esse evento merece uma reflexão um pouco mais ampla, também à luz do recente documento Desiderio desideravi.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em seu blog Come Se Non, 15-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Depois do sofisma do Summorum pontificum, que havia criado quase “ex nihilo” a copresença paralela de duas formas rituais do mesmo rito romano, uma das quais era a correção da outra, criou-se na Igreja uma condição semelhante à da fábula “A roupa nova do imperador”. Só podiam ver as novas roupas rituais, duplas e intercambiáveis aqueles que eram fiéis, leais, confiáveis. Os “estúpidos”, os não confiáveis, não viam nenhuma forma dupla possível e ficavam bastante perplexos.
Assim, uma série de sujeitos, muito além daqueles que estavam interessados na questão litúrgica, mas para não perder o valor simbólico agregado e para não sair das dinâmicas de poder, tornaram-se, até 2021, “fiéis estimadores” da “dupla forma”. Dois casos, acima de tudo: por um lado, ela havia se tornado um “critério de promoção ao episcopado”; se você se declarava disponível a “não obstruir” a forma extraordinária e até se deixava capturar no ato de celebrá-la, você subia muito em consideração. Por outro lado, ela havia se tornado um “critério de formação no seminário”, sobre o qual falarei mais adiante.
Mas, em toda essa confusão, que durava desde 2007, não se considerava de forma alguma que, como na fábula, um “papa menino” podia sair da multidão, que sempre poderia dizer, mesmo que com 14 anos de atraso, “o paralelismo ritual está nu e vazio”! Ou seja, uma ideia teologicamente infundada, eclesiologicamente perigosa e liturgicamente destrutiva.
Hoje, graças à Traditionis custodes, podemos desfrutar da parresía assegurada por esse papa menino. Ainda mais um ano depois da Traditionis custodes, quando recentemente temos também um documento que é seu filho (Desiderio desideravi) e que esclarece o seu sentido e permite identificar o seu alcance em uma dimensão muito mais ampla do que uma simples “questão litúrgica”.
Por isso, o significado do texto de um ano atrás pode ser interpretado em três níveis diferentes, sobre os quais gostaria de me deter brevemente:
a) No nível teológico: a Traditionis custodes restaura a “lógica elementar” e a “única saudável” da vigência universal de um único rito romano, sem nenhuma possibilidade – senão excepcional ou pessoal – de vigência paralela de uma forma “anterior” do rito romano. A lógica desse paralelismo universal, que o Summorum pontificum havia pretendido disponibilizar para toda a Igreja, não tem nenhum fundamento nem teológico, nem doutrinal nem disciplinar. É um pastiche e uma mistificação que surpreendem pelo fato de terem sido permitidos justamente por um “papa teólogo”.
O “papa pastor” parece aqui muito mais teólogo do que o antecessor. Porque a Traditionis custodes não tutela apenas a liturgia, mas também a eclesiologia, a espiritualidade, as formas do ministério e da espiritualidade, em que nunca se pode assumir como princípio que “o que foi sagrado para as gerações anteriores deve permanecer assim também para as posteriores”. Esse não é um princípio teológico, mas um problema de compreensão distorcida da tradição, que não é sobretudo um monumento a ser conservado, mas um jardim a ser cultivado. A Traditionis custodes não é principalmente um documento sobre a liturgia, mas sobre o sentido e o conceito de “tradição”, que é uma coisa séria demais para ser deixada nas mãos inexperientes dos tradicionalistas.
b) No nível eclesiológico: a Traditionis custodes restaura a unidade da Igreja no nível da sua linguagem mais original, a simbólica e ritual. Era evidente, desde 2007, que pensar em uma Igreja que pode ter, paralelamente, até mesmo na mesma paróquia, dois calendários diferentes, dois espaços diferentes, dois tempos diferentes, e ministros, e textos, e gestos diferentes da celebração era uma loucura.
Talvez o fato mais grave, ao qual a Traditionis custodes reagiu de forma decisiva, foi o escândalo público de uma formação paralela dos seminaristas, em muitos seminários estadunidenses e também no North American College de Roma. Só superiores que querem futuros padres desprovidos de uma identidade clara poderiam imaginar em lhes dar uma formação litúrgica segundo a forma reformada e, ao mesmo tempo, segundo a forma que o Concílio Vaticano II explicitamente quis reformar. A unidade da Igreja é construída com um ensinamento e uma prática ritual unitários, não contraditórios e espiritualmente não dilacerantes.
c) No nível litúrgico: o valor da Traditionis custodes, no nível litúrgico, é hoje mais claro graças à recentíssima Desiderio desideravi. A recuperação do grande valor do Movimento Litúrgico (não de Novos Movimentos Litúrgicos reacionários) e da Reforma Litúrgica (não de mesquinhas Reformas da Reforma) traz novamente para o centro as duas reivindicações fundamentais pedidas pelo Vaticano II: a recuperação da ação litúrgica como ação de “toda a comunidade sacerdotal” exige uma passagem corajosa e verdadeira do ato de “reforma” para o ato de “formação”.
A retomada de alguns textos de R. Guardini, centrais na Desiderio desideravi, esclarece que esse não é apenas o pensamento do Concílio ou dos reformadores, mas de todo o século XX. Trata-se de liberar as verdadeiras energias da linguagem ritual (verbal e não verbal) como culmen et fons de toda a ação da Igreja. Isso ocorre hoje não mais principalmente em latim e em um rito só de padres e não da assembleia, mas em muitíssimas línguas, em numerosas e diversas assembleias, cujas culturas entraram, há 60 anos, no patrimônio comum da grande tradição eclesial.
Uma Igreja que quer “conservar a tradição” não deve ter medo das culturas diferentes com as quais hoje podemos fazer experiência da fé e expressar o nosso credo. Essa “mesa comum”, que só é possível com o fim do Summorum pontificum, poderá permitir avaliar os limites do que foi feito até hoje e assumir com coragem o caminho a ser percorrido no nível das linguagens verbais e não verbais. Um grande canteiro de obras poderá ser aberto: porque se conserva a tradição caminhando para a frente, e não recuando.
Um menino que diz que “o rei está nu” e um papa menino que diz que “há apenas uma forma ritual universal na Igreja Católica” são duas figuras da “parresía” que libera o Espírito para a sua ação na história. Quem se iludiu não deve dizer: “Sinto-me rejeitado pelo papa”. Em vez disso: “Fui iludido de que é possível ser católico sem ter que aceitar a evolução e a reforma da minha Igreja dos últimos 60 anos, a partir do Vaticano II”. Essa é a ilusão da qual é preciso se libertar de uma vez por todas.
Um papa menino, que fala no momento certo, é um guardião da tradição mais eficaz de Máximos e Sumos Pontífices.